Tu, só tu,
puro amor
Textos-fonte:
Obra completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol
II, 1994.
Publicado originalmente
Tu só, tu, puro amor, com força
crua,
Que os corações humanos tanto
obriga...
Na primeira impressão escrevi uma
nota, que reproduzi na segunda, acrescentando-lhe alguma coisa explicativa.
Como na cena primeira se trata da anedota que motivou o
epigrama de Camões ao duque de Aveiro, disse eu ali que, posto se lhe
não possa fixar data, usaria dela por me parecer um curioso rasgo de costumes.
E aduzi: “Engana-se, creio eu, o Sr. Teófilo Braga, quando afirma que ela só
podia ter ocorrido depois do regresso de Camões a Lisboa, alegando, para
fundamentar essa opinião, que o título de duque de Aveiro foi criado em 1557.
Digo que se engana o distinto escritor, porque eu encontro o duque de Aveiro,
cinco anos antes, 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa d.
Joana, noiva do príncipe d. João (Veja Mem. e Doc. Anexos aos Anéis de d. João
III, págs. 440 e 441); e, se Camões só em 1553 partiu para a Índia, não é
impossível que o epigrama e o caso que lhe deu origem
fossem anteriores.”
Temos ambos razão, o Sr. Teófilo Braga e eu. Com efeito, o ducado de Aveiro só foi criado
formalmente em 1557, mas o agraciado usava o título desde muito antes, por
mercê de D. João III: é o que confirma a própria carta régia de 30 de agosto
daquele ano, textualmente inserta na Hist. Geneal... de D.
Antônio Caetano de Souza, que cita em abono da asserção o testemunho de
Andrade, na Crônica d’el-rei d, João III. Naquela
mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na transladação dos ossos d’el-rei D, Manuel estivera presente
o duque de Aveiro. Não é pois impossível que a anedota
ocorresse antes da primeira ausência de Camões.
PERSONAGENS
ANTÔNIO DE LIMA
CAMINHA
D. MANUEL DE PORTUGAL
CAMINHA, D. MANUEL DE PORTUGAL
D. MANUEL — Não; não foi El-rei. Adivinhai o que seria, se
é que o não sabeis já.
CAMINHA — Que foi?
D. MANUEL — Sabeis o caso da
galinha do duque de Aveiro?
CAMINHA — Não.
D. MANUEL — Não sabeis? — Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz
um gesto de má vontade.) Uns versos como ele os sabe fazer. (À parte.) Doe-lhe
a noticia. (Alto.) Mas, deveras não sabeis do encontro de Camões com o
duque de Aveiro?
CAMINHA — Não.
D. MANUEL — Foi o próprio duque
que mo contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei...
CAMINHA — Que houve então?
D. MANUEL — Eu vo-lo digo;
achavam-se ontem, na igreja do Amparo, o duque e o poeta...
CAMINHA, com enfado. — O
poeta! O poeta! Não é mais que engenhar aí uns poucos
versos, para ser logo poeta! Desperdiçais o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel.
Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas
mortas...
D. MANUEL — Parece-vos então...?
CAMINHA — Que esse moço tem algum
engenho, muito menos do que lhe diz a presunção dele e a cegueira dos amigos;
algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E canções... Digo-vos que
li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com boa vontade, mais
esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos,
digo-vos que pode vir a ser...
D. MANUEL — Acabe.
CAMINHA — Está acabado: um poeta
sofrível.
D. MANUEL — Deveras? Lembra-me que
já isso mesmo lhe negastes.
CAMINHA, sorrindo. — No meu epigrama, não? E nego-lho ainda agora, se não fizer o
que vos digo. Pareceu-vos gracioso o epigrama? Fi-lo por desenfado, não por ódio... Dizei, que tal vos pareceu ele?
D. MANUEL — Injusto, mas gracioso.
CAMINHA — Sim? Tenho em mui boa
conta o vosso parecer. Algum tempo supus que me desdenháveis. Não era
impossível que assim fosse. Intrigas da corte dão azo a muita injustiça; mas
principalmente acreditei que fossem artes desse rixoso... Juro-vos que ele me
tem ódio.
D.
MANUEL — O Camões?
CAMINHA — Tem, tem...
D. MANUEL — Por quê?
CAMINHA — Não sei, mas tem. Adeus.
D. MANUEL — Ides-vos?
CAMINHA — Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e
dirige-se para a porta da direita. D. Manuel dirige-se para o fundo.)
D. Manuel, andando.
vender vaca por carneiro...
D. MANUEL — Meus não; são de
Camões... (Repete, descendo a cena.)
Vender vaca por carneiro...
Vender vaca por carneiro...
D. MANUEL — O duque de Aveiro e o
poeta encontraram-se ontem na igreja do Amparo. O duque prometeu ao poeta
mandar-lhe uma galinha de sua mesa, mas só lhe mandou um assado. Camões
retorquiu-lhe com estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir:
Eu já vi a taverneiro,
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi, por vida minha,
vender vaca por galinha,
senão ao duque de Aveiro.
— Confessai, confessai senhor
Caminha, vós que sois poeta, confessai que há aí certo
pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos dele,
alguns dos quais são sublimes, aquele por exemplo:
ou este
Tanto de meu estado me acho
incerto...
CAMINHA — Até lhe sei o fim:
respondo que não sei, porém suspeito
que só porque vos vi, minha senhora.
D. Manuel, à parte. — Que
quererá ele?
CAMINHA — Amam-se por força.
D. MANUEL — Cuido que não.
CAMINHA — Que não?
D. MANUEL — Acabou, como tudo acaba.
CAMINHA, sorrindo. — Anda
lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é
impossível que também vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de
Aragão?
D. MANUEL — Que tem?
CAMINHA — Vede: um simples nome
vos faz estremecer. Mas sossegai, que não sou vosso
inimigo; mui ao contrário, amo-vos, e a ela também... e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sai pela direita.)
D. ANTÔNIO DE LIMA — Que
espreitais aí, senhor D. Manuel.
D. MANUEL — Estava a ver o porte
elegante do nosso Caminha. Não vades supor que era alguma dama. (Levanta o
reposteiro.) Olhai, lá vai ele a desaparecer. Vai a El-rei.
D. ANTÔNIO — Também eu. Tu, não,
minha boa Catarina. A rainha espera-te. (D. Catarina faz uma reverência e
caminha para a porta da esquerda.) Vai, vai, minha gentil flor... (A D.
Manuel.) Gentil, não a achais?
D. MANUEL — Gentilíssima.
D. ANTÔNIO — Agradece, Catarina.
D. CATARINA — Agradeço; mas o
certo é que o senhor D. Manuel é rico de louvores...
D. MANUEL — Eu podia dizer que a
natureza é que foi conosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal
aquilo que só poetas podem dizer bem. (D. Antônio fecha o rosto.) Dizem
que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D.
Antônio... (Corteja-os e sai. D. Catarina vai a entrar, à esquerda. D.
Antônio detém-na.)
D. ANTÔNIO — Ouviste aquilo?
D. CATARINA, parando. — Aquilo?
D. ANTÔNIO — “Que só poetas podem
dizer bem” foram as palavras dele. (D. Catarina aproxima-se.) Vês tu,
filha? tão divulgadas andam já essas coisas, que até
se dizem nas barbas de teu pai!
D. CATARINA — Senhor, um gracejo...
D. ANTÔNIO, enfadando-se. — Um
gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero,
que me dói... “Que só poetas podem dizer bem!” E que é poeta! Pergunta ao nosso
Caminha o que é esse atrevido, o que vale a sua poesia... Mas, que seja outra e
melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te às
mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te.
D. CATARINA, procurando
moderá-lo. — Meu pai...
D. ANTÔNIO — Teu pai e teu senhor!
D. CATARINA — Meu senhor e pai... juro-vos que... Juro-vos que vos quero e muito... Por quem sois, não vos irriteis contra mim!
D. ANTÔNIO — Jura que me
obedecerás.
D. CATARINA — Não é essa a minha
obrigação?
D. ANTÔNIO — Obrigação é, e a mais
grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pai que sou. Agora, anda,
vai.
D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE
ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. ANTÔNIO — Mas não, não vás sem
falar à senhora D. Francisca de Aragão, que aí nos aparece, fresca como a rosa
que desabotoou agora mesmo, ou, como dizia a farsa do nosso Gil Vicente, que eu
ouvi há tantos anos, por tempo do nosso sereníssimo senhor D. Manuel... Velho estou, minha formosa dama...
D. FRANCISCA — E que dizia a farsa?
D. ANTÔNIO — A farsa dizia:
É bonita como estrela,
Uma rosinha de Abril,
Uma frescura de maio,
Tão manhosa.
Tão sutil!
— Vede que a farsa adivinhava já a
nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de maio,
tão manhosa, tão sutil...
D. FRANCISCA — Manhosa, eu?
D. ANTÔNIO — E sutil. Não vos
esqueça a rima, que é de lei. (Vai a sair pela porta da direita; aparece
Camões.)
CENA VI
D. CATARINA, à parte. — Ele!
D. FRANCISCA, baixo a D.
Catarina. — Sossegai!
D. ANTÔNIO — Vinde cá, senhor
poeta das galinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigrama. Lindo,
sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazê-lo do que eu a dizer-vos
que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Há de
emendar, que não é nenhum mesquinho.
CAMÕES, alegremente. — Pois El-rei deseja o contrário...
D. ANTÔNIO — Ah! Sua Alteza falou-vos
disso?... Contar-mo-eis em tempo. (A D. Catarina, com intenção). Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? Eu vou
falar a El-rei. (D. Catarina corteja-os e
dirige-se para a esquerda; D. Antônio sai pela direita.)
OS MESMOS, menos D. ANTÔNIO DE LIMA
(D. Catarina quer sair, D.
Francisca de Aragão detém-na.)
D. FRANCISCA — Ficai, ficai...
D. CATARINA — Deixe-me ir!
CAMÕES — Fugis de mim?
D. CATARINA — Fujo... Assim o
querem todos.
CAMÕES — Todos quem?
D. FRANCISCA, indo a Camões. — Sossegai.
Tendes, na verdade, um gênio, uns espíritos... Que há de ser? Corre a mais e
mais a notícia dos vossos amores... e o senhor D.
Antônio, que é pai, e pai severo...
CAMÕES, vivamente a D.
Catarina. — Ameaça-vos?
D. CATARINA — Não; dá-me
conselhos... bons conselhos, meu Luís. Não vos quer
mal, não quer... Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas passou. Dizei-nos lá
esses versos de que faláveis há pouco. Um epigrama,
não é? Há de ser tão bonito como os outros... menos um.
CAMÕES — Um?
D. CATARINA — Sim, o que fizestes
a D. Guiomar de Blasfé.
CAMÕES, com desdém. — Que
monta? Bem frouxos versos.
D. FRANCISCA — Não tanto; mas eram
feitos a D. Guiomar, e os piores versos deste mundo são os que se fazem a
outras damas. (A D. Catarina.) Acertei? (A Camões.) Ora, andai,
vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigrama, não a
mim, que já o sei de cor, porém a ela que ainda não sabe nada... E que foi que
vos disse El-rei?
CAMÕES — El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: — «Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques
vos faltem com galinhas, por que assim nos alegrareis com versos tão chistosos.
D. FRANCISCA — Disse-vos isto? é um grande espírito El-rei!
D. CATARINA, a D. Francisca. — Não
é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes?
CAMÕES
— Eu? nada... ou quase nada. Era tão inopinado louvor que me tomou a fala. E,
contudo, se eu pudesse responder agora... agora que recobrei os espíritos...
dir-lhe-ia que há aqui (leva a mão à fronte) alguma coisa mais do que
simples versos de desenfado... dir-lhe-ia que... (Fica absorto um instante,
depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quais se acha.) Um sonho...
às vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu século...
Sonhos... sonhos! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da
cristandade, e que o amor é a alma do universo!
D. FRANCISCA — O amor e a espada,
senhor brigão!
CAMÕES, alegremente. — Por
que me não dais logo as alcunhas que me hão de ter posto os poltrões do Rocio?
Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria...
Não sabeis? Naturalmente não; vós gastais as horas nos lavores e recreios do
paço; mora aqui a doce paz do espírito.
D. CATARINA, com intenção. — Nem
sempre.
D. FRANCISCA — Isto é convosco; e
eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns
passos para o fundo.)
D.
CATARINA — Vinde
cá...
D. FRANCISCA — Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que há de estar um pouco
enfadado... Ouviu ele o que El-rei vos disse?
CAMÕES — Ouviu; que tem?
D. FRANCISCA — Não ouviria de boa
sombra.
CAMÕES — Pode ser que não... dizem-me que não. (A D. Catarina.) Pareceis
inquieta...
D. CATARINA, a D. Francisca. — Não,
não vades; ficai um instante.
CAMÕES, a D. Francisca. — Irei
eu.
D. FRANCISCA — Não, senhor; irei
eu só. (Sai pelo fundo.)
CAMÕES, com uma reverência. — Irei
eu. Adeus, minha senhora D. Catarina de Ataíde! (D. Catarina dá um passo
para ele.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda.
D. CATARINA — Não... vinde cá... (Camões detém-se.) Enfadei-vos? Vinde um
pouco mais perto. (Camões aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidais
de mim?
CAMÕES — Cuido que me quereis
ausente.
D. CATARINA — Luís! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós...
Duvidais de mim?
CAMÕES — Não duvido de vós; não
duvido da vossa ternura: da vossa firmeza é que eu duvido.
D. CATARINA — Receais que fraqueie
algum dia?
CAMÕES — Receio; chorareis muitas
lágrimas, muitas e amargas... mas, cuido que
fraqueareis.
D. CATARINA — Luís! juro-vos...
CAMÕES — Perdoai, se vos ofende
esta palavra. Ela é sincera: subiu-me do coração à boca. Não posso guardar a
verdade; perder-me-ei algum dia por dizê-la sem rebuço. Assim me fez a natureza; assim irei à sepultura.
D. CATARINA — Não, não fraquearei,
juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a afrontar tudo, até a
cólera de meu pai. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém... (Camões dá
um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém,
defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que
pensaria; tinha medo há pouco, já não tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luís.
CAMÕES — Minha boa Catarina.
D. CATARINA — Não me chameis boa,
que eu não sei se o sou... Nem boa, nem má.
CAMÕES — Divina sois
D. CATARINA — Não me deis nomes
que são sacrilégios.
CAMÕES — Que outro vos cabe?
D. CATARINA — Nenhum.
CAMÕES — Nenhum? — Simplesmente a
minha doce e formosa senhora D. Catarina de Ataíde, uma ninfa do paço, que se
lembrou de amar um triste escudeiro, sem se lembrar que seu pai a guarda para
algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mor. Tudo isso havereis,
enquanto que o coitado de Camões irá morrer em África ou Ásia...
D. CATARINA — Teimoso sois! Sempre
essas idéias de África...
CAMÕES — Ou Ásia. Que tem isso?
Digo-vos que, às vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da
corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginai agora...
D. CATARINA — Não imagino nada;
vós sois meu, tão só meu, tão-somente meu. Que me
importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que
não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixáveis, para ir às vossas
Áfricas... E os meus sonetos? Quem mos havia de fazer, meu rico poeta?
CAMÕES — Não faltará quem vo-los
faça, e da maior perfeição.
D. CATARINA — Pode ser; mas eu
quero-os ruins, como os vossos... como aquele da
Circe, o meu retrato, dissestes vós.
Sem ver de que; um riso brando e
honesto,
Quase forçado um doce e humilde
gesto
De qualquer
alegria duvidoso...
CAMÕES — De vexada! Quando é que a
rosa se vexou, por que o sol a beijou de longe?
D. CATARINA — Bem respondido, meu
claro sol.
CAMÕES — Deixai-me repetir que sois divina. Natércia minha, pode
a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe
ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas
humanas, não é assim? Deixai-me crê-lo, ao menos; deixai-me crer que há um
vínculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria natureza poderia já
destruir. Deixai-me crer... Não me ouvis?
D. CATARINA — Ouço, ouço.
CAMÕES — Crer que a última palavra
de vossos lábios será o meu nome. Será? Tenha eu esta fé, e não se me dará da
adversidade; sentir-me-ei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que
todos os demais homens.
D. CATARINA — Acabai!
D. CATARINA — Não sei; mas é tão
doce ouvir-vos! Acabai, acabai, meu poeta! Ou antes,
não, não acabeis; falai sempre, deixai-me ficar perpetuamente a escutar-vos.
CAMÕES — Ai de nós! A perpetuidade
é um simples instante, um instante em que nos deixam sós nesta sala! (D. Catarina afasta-se rapidamente.) Olhai; só a idéia do
perigo vos arredou de mim.
D. CATARINA — Na verdade, se nos
vissem... Se alguém aí, por esses reposteiros... Adeus...
CAMÕES — Medrosa,
eterna medrosa!
D. CATARINA — Pode ser que sim;
mas não está isso mesmo no meu retrato?
Um medo sem ter culpa; um ar
sereno,
Um longo e obediente sofrimento...
CAMÕES -
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu
pensamento.
CAMÕES — Ides-vos?
D. CATARINA — A rainha espera-me. Audazes fomos, Luís. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros...
D. CATARINA, detendo-o. — Não,
não. Separemo-nos.
CAMÕES — Adeus! (D. Catarina
dirige-se para a porta da esquerda; Camões olha para a porta da direita.)
D. CATARINA — Andai, andai!
CAMÕES — Um instante ainda!
D. CATARINA — Imprudente! Por quem
sois, ide-vos meu Luís!
CAMÕES — A rainha espera-vos?
D.
CATARINA — Espera.
CAMÕES — Tão raro é ver-vos!
D. CATARINA — Não afrontemos o
céu... podem dar conosco...
CAMÕES — Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e a
que o faria respeitar!
D. CATARINA, aflita pegando-lhe
na mão. — Reparai, meu Luís, reparai onde estais,
quem eu sou, o que são estas paredes... domai esse gênio
arrebatado, peço-vo-lo eu. Ide-vos em boa paz, sim?
CAMÕES — Viva a minha corça
gentil, a minha tímida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus!
D. CATARINA — Adeus!
CAMÕES, com a mão dela
presa. — Adeus
D. CATARINA — Ide... deixai-me ir!
CAMÕES — Hoje há luar; se virdes
um embuçado diante das vossas janelas, quedado a olhar para cima, desconfiai
que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de
longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrela.
D. CATARINA — Cautela,
não vos reconheçam.
CAMÕES — Cautela haverei; mas, que
me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno.
D. CATARINA — Sossegai. Adeus!
CAMÕES — Adeus!
(D. Catarina dirige-se para a
porta da esquerda, e pára diante dela, à espera que Camões saia. Camões
corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o
reposteiro da porta da direita, e aparece Caminha. — D. Catarina dá um pequeno
grito, e sai precipitadamente. — Camões detém-se. Os dois homens olham-se por um instante.)
CAMÕES, CAMINHA
CAMINHA, entrando. — Discreteáveis com alguém, ao que parece...
CAMÕES — É verdade.
CAMINHA — Ouvi de longe a vossa
fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava há pouco
com alguns fidalgos. Sois o bem-amado, entre os
últimos de Coimbra. — Com que, discreteáveis... Com
alguma dama?
CAMÕES — Com uma dama.
CAMINHA — Certamente formosa, que
não as há de outra casta nestes reais paços. Sua Alteza cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pai. Damas formosas, e, quanto possível, letradas. São estes, dizem, os
bons costumes italianos. É vós, senhor Camões, por que
não ides à Itália?
CAMÕES — Irei à Itália, mas
passando por África.
CAMINHA — Ah! Ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho...
Não, poupai os olhos, que são o feitiço dessas damas da corte; poupai também a
mão, com que nos haveis de escrever tão lindos versos; isto
vos digo que poupai...
CAMÕES — Uma palavra, senhor Pero
de Andrade. Uma só palavra, mas sincera.
CAMINHA — Dizei.
CAMÕES — Dissimulais algum outro
pensamento. Revelai-mo... intimo-vos
que mo reveleis.
CAMINHA — Ide à Itália, senhor Camões, ide à Itália.
CAMÕES — Não resistireis muito
tempo ao que vos mando.
CAMINHA — Ou à África, se o
quereis... ou à Babilônia... À Babilônia melhor; levai
a harpa do desterro, mas em vez de a pendurar de um
salgueiro, como na Escritura, cantar-nos-eis a linda copla da galinha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem:
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
CAMÕES, pegando-lhe no pulso. — Por vida minha, calai-vos!
CAMINHA — Vede o lugar em que
estais.
CAMÕES, solta-o.
— Vejo; vejo também quem sois; só não vejo o que odiais em mim.
CAMINHA — Nada.
CAMÕES — Nada?
CAMINHA
— Coisa nenhuma.
CAMÕES — Mentis pela gorja, senhor camareiro.
CAMINHA — Minto? Vede lá; ia-me
deixando arrebatar, ia conspurcando com alguma vilania esta sala de El-rei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? — Pode ser
que sim, porque eu creio que efetivamente vos odeio, mas só há um instante,
depois que me pagastes com uma injúria o aviso que vos dei.
CAMÕES — Um aviso?
CAMINHA — Nada menos. Queria eu
dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas.
CAMÕES — Não serão; mas eu as
farei caladas.
CAMINHA — Pode ser. Essa dama
era...?
CAMÕES — Não reparei bem.
CAMINHA — Fizestes mal; é
prudência reparar nas damas; prudência e cortesia. Com que, ides à África? Lá
estão os nossos em Mazagão, cometendo façanhas
contra essa canalha de Mafamede; imitai-os. Vede, não
deixeis lá esse braço, com que nos haveis de calar as paredes os reposteiros. É
conselho de amigo.
CAMÕES — Por que sereis meu amigo?
CAMINHA — Não digo que o seja; o
conselho é que o é.
CAMÕES — Credes, então...?
CAMINHA — Que poupareis uma grande
dor e um maior escândalo.
CAMÕES — Percebo-vos. Imaginais
que amo alguma dama? Suponhamos que sim. Qual é o meu delito? Em que ordenação,
em que rescrito, em que bula, em que escritura, divina ou humana, foi já dado como delito amarem-se duas criaturas?
CAMINHA — Deixai a corte.
CAMÕES — Digo-vos que não.
CAMINHA — Oxalá que não!
CAMÕES, à parte. — Este
homem... que há neste homem? Lealdade ou perfídia? (Alto.) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da cena). Por que não tratamos
de versos?... Fora muito melhor...
CAMINHA. — Adeus, senhor Camões. (Camões
sai.)
CENA X
CAMINHA, logo D. CATARINA DE ATAÍDE
CAMINHA – Ide, ide, magro poeta de camarins... (Desce ao proscênio.) Era
ela, de certo, era ela que aí estava com ele, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh temeridade do amor! Do amor? ele... ele... Mas seria ela
deveras?... Que outra podia ser?
D. CATARINA, espreita e entra. — Senhor... senhor...
CAMINHA — Ela!
D. CATARINA — Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e peço-vos que não nos façais mal. Sois amigo de meu pai, ele é vosso amigo; não
lhe digais nada. Fui imprudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Caminha
não diz nada.) Então? falai... poderei contar convosco?
CAMINHA — Comigo? (D. Catarina
inquieta, aflita, pega-lhe na mão; ele retira-lha com
aspereza.) Contar comigo! para que, minha senhora
D. Catarina? Amais um mancebo digno, por que vós o amais... muito,
não?
D. CATARINA — Muito.
CAMINHA — Muito, dizeis... E éreis
vós que estáveis aqui, com ele, nesta sala solitária, juntos um do outro, a
falarem naturalmente do céu e da terra... ou só do
céu, que é a terra dos namorados. Que dizeis?...
D. CATARINA, baixando os olhos.
— Senhor...
CAMINHA — Galanteios, galanteios, de que
se há de falar lá fora... (Gesto de D. Catarina.) Ah! cuidais que estes amores nascem e morrem no paço? — Não; passam além; descem à rua, são
o mantimento dos ociosos e ainda dos que trabalham, porque, ao serão,
principalmente nas noites de inverno, em que se há de ocupar a gente, depois de
fazer as suas orações? Com que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra... E confessais
que lhe quereis muito. Muito?
D. CATARINA — Pode ser fraqueza;
mas crime...onde está o crime?
CAMINHA — O crime está em desonrar
as cãs de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por vielas e praças; o crime
está em escandalizar a corte, com essas ternuras, impróprias do alto cargo que
exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E
parece-vos pequeno?
D. CATARINA — Bem; desculpai-me,
não direis nada...
CAMINHA — Não sei.
D. CATARINA — Peço-vos... de joelhos até... (Faz um gesto para ajoelhar-se, ele
impede-lho.)
CAMINHA — Perderíeis o tempo; eu
sou amigo de vosso pai.
D. CATARINA — Contar-lhe-eis tudo?
CAMINHA — Talvez.
D. CATARINA — Bem mo diziam
sempre; sois inimigo de Camões.
CAMINHA — E sou.
D. CATARINA — Que vos fez ele?
CAMINHA — Que me fez? (Pausa.) D.
Catarina de Ataíde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só
a sua soberba que me afronta; fosse só isso, e que me importava um frouxo
cerzidor de palavras, sem arte nem conceito?
D. CATARINA — Acabai.
CAMINHA — Também não é porque ele
vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D. Catarina
de Ataíde, vós o amais... eis o crime de Camões.
Entendeis?
D. Catarina, depois de um
instante de assombro. — Não quero entender.
CAMINHA — Sim, que também eu vos
quero, ouvis? — E quero-vos muito... mais do que ele,
e melhor do que ele; porque o meu amor tem o impulso do ódio, nutre-se do
silêncio, o desdém o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor...
D. CATARINA — Calai-vos! Pela
Virgem, calai-vos!
CAMINHA — Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverência.) Mandais alguma outra coisa?
D. CATARINA — Não, ficai, ficai.
Jurai-me que não direis nada...
CAMINHA — Depois da confissão que
vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei
tudo a vosso pai. Não sei se a ação é má ou boa; sei que vos amo, e que
detesto esse rufião, a quem vadios deram foros de
letrado.
D. CATARINA — Senhor! É demais!
CAMINHA — Defendei-o, não é assim?
D. CATARINA — Odiai-o, se vos apraz;
insulta-o, é que não é de cavaleiro...
CAMINHA — Que tem? O amor
desprezado sangra e fere.
D. CATARINA — Deixai que lhe chame
um amor vilão.
CAMINHA — Sois vós agora que me
injuriais. Adeus, senhora D. Catarina de Ataíde! (Dirige-se para o fundo.)
D. CATARINA, tomando-lhe o
passo. — Não! Agora não vos peço... intimo-vos que
vos caleis.
CAMINHA — Que recompensa me dais?
D. CATARINA — A vossa consciência.
CAMINHA — Deixai em paz os que
dormem. Quereis que vos prometa alguma coisa? Uma só coisa prometo;
não contar a vosso pai o que se passou. Mas, se por denúncia ou desconfiança,
for interrogado por ele, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: — não
faltarei à verdade, que é dever de cavaleiro; e depois... chorareis lágrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa
angústia será a minha consolação. Onde falecerdes de pura saudade, ai me glorificarei eu. Chamai-me agora perverso, se o
quereis; eu respondo que vos amo, e que não tenho outra virtude. (Vai a
sair, encontra-se com D. Francisca de Aragão; corteja-a e sai.)
D. CATARINA DE ATAÍDE, D.
FRANCISCA DE ARAGÃO
D. FRANCISCA — Vai afrontado o
nosso poeta. Que terá ele? (Reparando
D. CATARINA — Tudo sabe.
D. CATARINA — Esse homem.
Achou-nos nesta sala; eu tive medo; disse-lhe tudo.
D. CATARINA — Duas vezes
imprudente; deixei-me estar ao lado do meu Luís, a ouvir-lhe as palavras tão
nobres, tão apaixonadas... e o tempo corria... e podiam espreitar-nos... Credes que o Caminha diga alguma
coisa a meu pai?
D. FRANCISCA — Talvez não.
D. CATARINA — Quem sabe? Ele
ama-me.
D. FRANCISCA — O Caminha?
D. CATARINA — Disse-mo agora. Que admira? Acha-me formosa, como os outros. Triste dom é esse.
Sou formosa para não ser feliz, para ser amada às ocultas, odiada às
escancaras, e, talvez... Se meu pai vier a saber... que fará ele, amiga minha?
D. FRANCISCA — O senhor D. Antônio
é tão severo!
D. CATARINA — Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o castigue, que o encarcere, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-se
para a porta da direita.)
D. FRANCISCA — Onde ides?
D. CATARINA — Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da
esquerda.) Vou ter com a rainha; contar-lhe-ei tudo; ela me amparará.
Credes que não?
D. FRANCISCA — Creio que sim.
D. CATARINA — Irei, ajoelhar-me-ei
a seus pés. Ela é rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Sai pela esquerda.)
D. FRANCISCA, depois de um
momento de reflexão. — Talvez chegue cedo demais. (Dá um passo para a
porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas,
se se aventa a notícia? Meu Deus,
não sei... não sei... Ouço passos... Entra D.
Antônio de Lima. Ah!
D. ANTÔNIO — Que foi?
D. FRANCISCA — Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha.) Chegaram
galeões da Ásia; boas notícias, dizem...
D. ANTÔNIO — Eu não ouvi dizer
nada. (Querendo retirar-se.) Permitis?...
D. FRANCISCA — Jesus! Que tendes?
Que ar é esse? (Vendo entrar D. Manuel de Portugal.) Vinde cá,
senhor D. Manuel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo,
que me não quer... (Segurando na mão de D. Antônio ). Então, eu já não sou a vossa frescura de maio?
D. ANTÔNIO, sorrindo a custo. — Sois, sois. Manhosamente sutil, ou sutilmente manhosa, à escolha; eu é que
sou uma triste secura de dezembro, que me vou e vos deixo. Permitis, não? (Corteja-a
e dirige-se para a porta.)
D. MANUEL, interpondo-se. — Deixai
que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides ter com Sua
Alteza, suponho?
D. ANTÔNIO — Vou.
D. MANUEL — Ides levar-lhe
notícias da Índia?
D. ANTÔNIO — Sabeis que não é o
meu cargo...
D. MANUEL — Sei, sei; mas dizem
que... Senhor D. Antônio, acho-vos o rosto anuviado, alguma coisa vos penaliza
ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoai se vos interrogo. Que foi? Que há?
D. ANTÔNIO, gravemente. — Senhor
D. Manuel, tendes vinte e sete anos, eu conto sessenta; deixai-me passar. (D.
Manuel inclina-se, levantando o reposteiro. D. Antônio desaparece.)
CENA XIII
D. MANUEL — Vai dizer tudo a El-rei.
D. FRANCISCA — Credes?
D. MANUEL — Camões contou-me o
encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antônio;
achei-o agora mesmo, ao pé de uma janela, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia: "Não vos nego, senhor D. Antônio, que os achei naquela
sala, a sós e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei."
D. FRANCISCA — Ouvistes isso?
D.
MANUEL — D. Antônio
ficou severo e triste. “Querem escândalo?...” foram as suas palavras. E não
disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi
pedir alguma coisa a El-rei. Talvez o desterro.
D. FRANCISCA — O desterro?
D. MANUEL — Talvez. Camões há de
voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D. Antônio. Para quê? Que
outros lhe falem, sim; mas o meu Luís que não sabe conter-se... D. Catarina?
D. FRANCISCA — Foi lançar-se aos
pés da rainha, a pedir-lhe proteção.
D. MANUEL — Outra imprudência. Foi
há muito?
D. FRANCISCA — Pouco há.
D. MANUEL — Ide ter com ela, se é
tempo, dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D. Francisca vai a
sair, e pára ) Recusais?
D. FRANCISCA — Vou, vou. Pensava
comigo uma coisa. (D. Manuel vai a ela.) Pensava que é preciso querer
muito aqueles dois para nos esquecermos assim de nós.
D. MANUEL — É verdade. E não há
mais nobre motivo da nossa mútua indiferença. Indiferença, não; não o é, nem o
podia ser nunca. No meio de toda essa angústia que nos cerca, poderia eu
esquecer a minha doce Aragão? Poderíeis vós
esquecer-me. Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os
desgraçados. (D. Francisca sai pela esquerda.)
CENA XIV
D. ANTÔNIO, da porta, jubiloso.
— Interrogastes-me há pouco; agora hei tempo de vos responder.
D. MANUEL — Talvez não seja
preciso.
D. ANTÔNIO, adianta-se — Adivinhais então?
D. MANUEL — Pode ser que sim.
D. ANTÔNIO — Creio que adivinhais.
D. MANUEL — Sua Alteza
concedeu-vos o desterro de Camões.
D. ANTÔNIO — Esse é o nome da
pena: a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassalo, e a paz a um
ancião.
D. MANUEL — Senhor D. Antônio...
D. ANTÔNIO — Nem mais uma palavra,
senhor D. Manuel de Portugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural
que vos ponhais do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até
à vista, senhor D. Manuel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo
para sair.)
D. MANUEL — Se matais vossa filha?
D. ANTÔNIO — Não a matarei. Amores
fáceis de curar são esses que aí brotam no meio de galanteios e versos. Versos
curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei
austero, em pai inflexível... Até à vista, senhor D. Manuel. (Sai pela
esquerda.)
D. MANUEL DE PORTUGAL, logo CAMÕES
D. MANUEL — Perdido... está tudo perdido.(Camões entra pelo fundo.) Meu
pobre Luís! Se soubesses...
CAMÕES — Que há?
D. MANUEL — El-rei... El-rei atendeu às súplicas do senhor D. Antônio. Está
tudo perdido.
CAMÕES — E que pena me cabe?
D. MANUEL — Desterra-vos da corte.
CAMÕES — Desterrado! Mas eu vou
ter com Sua Alteza, eu direi...
D. MANUEL, aquietando-o. — Não
direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem; deixai que os vossos
amigos façam alguma coisa; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não
fareis mais do que agravá-la.
CAMÕES — Desterrado! E para onde?
D. MANUEL — Não sei. Desterrado da
corte é o que é certo. Vede... não há mais demorar no
paço. Saiamos.
CAMÕES — Aí me vou eu, pois,
caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os
versos dele fiquem assim melhores. Se nos vai dar uma nova Eneida, o
Caminha? Pode ser, tudo pode ser... Desterrado da
corte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crede, senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas
saudades cá me ficam.
D. MANUEL — Tornareis,
tornareis...
CAMÕES — E ela? Já o saberá ela?
D. MANUEL — Cuido que o senhor D.
Antônio foi dizer-lho
OS MESMOS, D. ANTÔNIO DE LIMA, D.
CATARINA DE ATAÍDE
D. Antônio aparece à porta da esquerda, trazendo D. Catarina
pela mão. — D. Catarina vem profundamente abatida.
D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES
D. MANUEL — Não. Saiamos!
CAMÕES — Vamos lá; deixemos estas
salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ela
aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, de onde não sei se a
levantarei mais... Nem eu... (Voltando-se para D. Manuel.) Nem vós, meu
amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguém.
CAMÕES — Não saberia dizer-vos;
mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida,
apagou-se agora mesmo, e de uma vez.
D. MANUEL — Confiai em mim, nos
meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com eles; induzi-los-ei a....
CAMÕES — A quê? A mortificarem um
camareiro-mor, a fim de servir um triste escudeiro que já estará a caminho de
África?
CAMÕES — Pode ser; sinto umas
tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as
da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer... África, disse eu? Pode ser
que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação.
D. MANUEL — Saiamos.
CAMÕES — E agora, adeus, infiéis
paredes; sede ao menos com passivas; guardai-ma, guardai-ma bem, a minha formosa D. Catarina! (A D.
Manuel.) Credes que tenho vontade de chorar?
D. MANUEL — Saiamos, Luís!
CAMÕES — Eu não choro, não; não
choro... não quero... (Forcejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia
é melhor; lá rematou a audácia lusitana o seu edifício, lá
irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta
quimera, esta coisa que me flameja cá dentro, quem sabe se... Um grande sonho,
senhor D. Manuel... Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes
navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de
palmas indianas? É a nossa glória, é a nossa glória que alonga os olhos, como a
pedir o seu esposo ocidental. E nenhum lhe vai dar o ósculo que a fecunde;
nenhum filho desta terra, nenhum que empunhe a tuba da imortalidade, para
dizê-la aos quatro ventos do céu... Nenhum... (Vai amortecendo a voz.) Nenhum... (Pausa, fita D. Manuel, como se acordasse, e dá de ombros.) Uma grande
quimera, senhor D. Manuel. Vamos ao nosso desterro.
FIM